terça-feira, 4 de setembro de 2012

Maior abandonado

                                                                                                               Para o Mostarda, lá de Sorocaba...




"Eu tô perdido
Sem pai nem mãe
Bem na porta da tua casa
Eu tô pedindo
A tua mão
E um pouquinho do braço
Migalhas dormidas do teu pão
Raspas e restos
Me interessam
Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Me interessam, me interessam"
                                         Cazuza



-- Você nunca fica sozinho, né?
-- Na BR a gente forma uma família, a gente sempre tem alguém, mas sempre tá sozinho...


Acordou com a boca seca, resquício da madrugada que se configurou em cores e flashs. Seu pequeno retângulo coberto e empoeirado já a muito era a sua casa, que levava nas costas com seus poucos pertences carregados de história.
Na mochila apenas duas bermudas, duas camisas e um casaco, além de um velho saco de dormir. O restante, matéria prima, elementos que acumulava de suas andanças e que usava para fazer arte, aquela que lhe possibilitava continuar a caminhar. A poeira já fazia parte de seu corpo, seus pés já não suportavam um calçado fechado, lhe apertavam. Dormia no chão, ainda que tivesse outras possibilidades e preferia seu banho frio, para que o corpo não se reacostumasse com aquilo que logo não teria mais.
Escolhera a BR fazia uns dez anos, por fuga, por vontade de viver, intensamente, não sabia ao certo, talvez o ímpeto adolescente o tenha levado a essa escolha que lhe exigiu tantas renúncias, mas só se abre mão assim de tudo quando o tudo não representa tanto assim.
Seus olhos claros, azuis, transparecem uma inocência dissimulada, fingida, armadilha à desavisadas, ferramenta de sobrevivência, eles lhe permitem a aproximação, não causam estranhamento no outro. Seus passos são rápidos, ainda que não tenha horários a seguir, não consegue ficar parado por muito tempo.
E de fato não fica parado, Belém, Paraty, Palmas, suas casas, moradas temporárias fielmente atualizadas em seu perfil on line, porque a solidão também é dura para quem opta por ela e a falsa sensação de companhia gerada pela cyber modernidade se faz ponte para os mundos que outrora vivenciou, com as famílias que construiu e abandonou.
Pegou sua asa e seu canudo, colocou a mochila nas costas e começou a caminhada diária, o primeiro desafio que seria facilmente resolvida por seus olhos e suas doces palavras, inerentes a ele e tão vazias de real significado, o café da manhã.
Estava só desta vez, não que as últimas companhias realmente tivessem lhe acompanhado, lhe cuidado, mas permitiam ao menos uma conversa, uma festa, uma viagem alucinógena, mística, espiritual, mas individual, mais uma forma de transbordar a animação, a alegria tão assustadoramente sua, tão assustadoramente parte de alguém que se tornara ator e espectador das misérias e da degradação do homem.
A sobrevivência é diária, não filosoficamente, mas de maneira prática e objetiva. Cada arte vendida lhe rende um camping, um hotel, uma comida, artigos básicos de sobrevivência que em alguns momentos assumem o papel de artigos de luxo.
Na BR não há luxos, há papelão no chão para tornar a dormida térmica, há beijos e transas superficiais pra acalmar os anseios do corpo, há riscos e perdas, há superficialidade. E quando a vida dói, quando o coração aperta e a vontade de chorar se torna gritante, há a solidão, o horizonte se perdendo na estrada, e a sensação de que ninguém poderá te ouvir.
Com a vontade saciada e um lanche para mais tarde devidamente guardado junto aos seus pertences foi caminhando rumo à estrada de terra, depois de se sujar na vida mundana da noite anterior seu corpo lhe pedia limpeza e purificação, e Iansã, a mãe da água doce, estaria disposta a recebê-lo e cuidá-lo em suas águas fortes que escorriam das rochas. As vendas, o trabalho, a exposição, ficariam pra depois, sua purificação nesse momento era mais importante e necessária, para que o retorno à Babilônia não o embrutecesse ao anoitecer.
O anoitecer chega e o crepúsculo camufla o olhar solitário, mas também lhe tira um pouco do brilho de suas armas azuis, pra que continuar? Por que ficar? O comichão da estrada de novo o toma, mas a saudade de um lugar pra voltar o tornava confuso e contraditório.
Busca em sua mochila mais um quadradinho, mais uma ilusão, uma mentira. Mentiras sinceras muitas vezes nos interessam e alguns carinhos efêmeros e vazios compuseram e encerraram sua noite.
O acordar, tão seco, confuso e difuso como o anterior surge, sem o fio tênue que conecta as lembranças. Flashs organizam, compõe e desorganizam suas memórias vividas e forjadas. Mas nada é tão bom ou tão triste assim... Apenas mais um dia, em busca de dinheiro, o mínimo para sobreviver, em busca de carinho, prazer, completude, em busca de não se sentir só, pelo menos por hoje.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Os 87...



Está verde. Ultimamente sempre tenho deixado assim, é como um sinal, uma metáfora de que eu também estou disponível, de que quero e tenho necessidade de conversar, de me comunicar.
Desço a barra de rolagem, o número 87 pisca, como se eu realmente tivesse 87 possibilidades de trocas, de conversas e de relações de amizade, amor, companheirismo e preocupação. Número ilusório, me engana. A barra de rolagem o denuncia, os 87 formam parte de uma rede artificial de pessoas que em algum momento da vida me encontraram, mas que não necessariamente se preocupam comigo, talvez até nem lembrem de mim.
Dos 87 me restam 3. Três pessoas que talvez, quem sabe, estejam dispostas a se relacionarem comigo, a conversarem, e que de verdade queiram saber como estou. Mas porque então não iniciam uma conversa? Devem estar ocupadas, devem estar conversando com outras pessoas, devem estar tão conectadas nos posts e imagens que queremos que todos vejam e que provavelmente não geram nenhum tipo de reação, de sentimento, em ninguém. É a falsa sensação de que aquilo que temos a dizer realmente importa a alguém, merece ser dito, é importante, pertinente. Incomodo-os? Questiono-os? Inicio logo uma conversa vazia que me gerará alguns minutos de distração, de alienação da solidão que grita em meus ouvidos?
Nas atualizações percebo que há aqueles que não estão verdes, disponíveis, mas que se manifestam, que estão ali, apenas não querem iniciar uma conversa, não precisam. Sinto inveja. Já fui assim. Já me mantive off todas as vezes que me aventurava no mundo virtual, o vazio, a efemeridade que hoje me confortam, outrora me eram completamente dispensáveis.
Ele também está ali, nas atualizações, mas off. Inatingível. Superior. Não dependente daquelas relações superficiais. Queria conversar, conhecê-lo, descobrir um pouco mais sobre nossas semelhanças e diferenças. Possibilitar a saída do âmbito virtual, ir para o âmbito real. Mas ele continua ali, off, preso em seu mundo, livre em seu próprio mundo.
Acompanho as atualizações, curto ou não? Comento ou não? Me importo ou não? Tanto faz. Meu mundo está solitário e vazio, o dele, quem sabe... Somos todos tão egoístas, inertes em nossa própria arrogância, ego, medos... E nada acontece, e o mundo passa, a vida passa. Quantas outras possíveis conversas, convivências e relações não aconteceram, não acontecerão. E o verde continua verde, o on continua brilhando, os 87 oscilam, ora 100, ora 40, ora 2.
Fecho o computador, como um ato de rebeldia, de tentativa de libertação, apago as luzes, todas aquelas que estão acesas para fingir que há mais alguém na casa. Digo boa noite, ninguém responde. Desligo a TV que me fazia companhia e vou dormir... Não sem antes olhar o celular e imaginar que alguém possa se importar e mandar um sms.    

terça-feira, 22 de maio de 2012

Diálogo Interno

Pero no pudo sentir auténtica melancolía, porque toda la melancolía se la había llevado el Otro Yo. - Mario Benedetti 



Para o 9o ano do Colégio São Domingos
- Acorda, acorda...

- Outra vez você

- Ainda não resolvemos as nossas diferenças...

- E nunca vamos resolvê-las

- Como assim nunca, devemos sempre buscar nosso equilíbrio, agradar a todos, ser querida por todos.

- Ridículo... Ninguém consegue isso. Sério mesmo que você tem isso como objetivo de vida?

- E por que não? A harmonia, a relação fraterna com o outro, a...

- A vida morna, a fuga dos conflitos, a necessidade de sentir-se aprovada pelos outros, de atender às expectativas alheias.

- Como você é exagerada! Não é isso, é apenas pensar no outro, cuidar dos sentimentos e não deixar que ninguém a sua volta se magoe, se machuque...

- Mas, e eu? E o que eu sinto? E quem vai cuidar dos meus sentimentos, das minhas emoções?

- Mas quando se tem uma vida morna as emoções individuais também passam a ser mínimas. Quase não terá tempo para elas, cuidar do mundo demanda tempo...

- Não leve a mal, não é que eu não pense no outro, ou não queira cuidar do mundo, mas será que eu posso escolher simplesmente senti-lo? Fazer parte dele? Intensamente?

- Mas aí surge o risco de se machucar, e se machucando você perde a força, e surge o risco de se descontrolar, de não conseguir lidar com as incertezas do mundo...

- E sofrerei

- Sofrerá

- E chorarei

- Chorará

- E doerá

- Absurdamente

- E não terei tido uma vida morna, não terei passado, terei experimentado as dores e as delícias do mundo...

- Mas a que preço...

- É... o preço... a angústia... a incerteza...

- A solidão

- A possível solidão... Mas essa pode acontecer estando ou não acompanhada.

- ...

- Ande, volte para a cama, deite-se, volte a dormir que por enquanto sou eu quem se mostra, você já esteve em evidência tempo demais...

- É, até você cansar de se machucar

- Não, meu bem, até eu cansar de viver!