quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O mundo começa agora, apenas começamos...

Dormira vencida pela exaustão, após uma noite de entrega aos jogos descritivos que tanto a encantavam e que fazia da literatura seu escape para outro mundo... As sensações que lhe acometiam a faziam ser outra, tornar-se outra, a permitiam ser mais bonita, mais densa e mais interessante do que realmente era, quando mergulhava naquelas sinestesias, metáforas e alegorias já não era mais um alguém medíocre, passava a ser tal qual qualquer grande personagem feminino da literatura universal.
Tinha um apresso particular às escritoras, àquelas que criavam mulheres tão contraditórias que seriam capazes de afirmar à sociedade dogmas que as enojavam e que renegariam antes de dormir, elas sim eram mais humanas do que muitas que não se permitiam questionar, eram mais reais, mais possíveis.
Aquela noite, porém, havia se entregado a um autor e não autora, excitara-se e instigara-se com uma porção de contos de um certo escritor uruguaio, dentre eles havia um que narrava a trajetória de um jovem que negava a existência de um outro eu que o compunha, mas não eram diversas faces de uma mesma personalidade, não era uma estratégia para o fingimento poético, o que mais a encantara era que aquele outro eu tomava vida, agia independentemente da ação do eu original.
Por fim dormira, cansada e vazia, sugada por aquele fragmento de personagem que por sentir demais desistira de viver. Pensando nas diversas possibilidades de seus outros eu permitiu-se adormecer, e já em estado profundo de sono pode ver-se, assistir a suas ações como uma espectadora em um cinema e se espantou ao perceber que não agia de maneira tão passiva como era comum quando acordada.
Despertou, devagar, sem sobressaltos, meia hora antes do despertador tocar. Abriu os olhos e se deu conta de que fora apenas um sonho, mas a possibilidade, o se que tanto incrementa a nossa existência a fez mais uma vez fechar os olhos. Respirou, pensou, “e se...” “Só hoje”, “apenas hoje”, “e se...”
Levantou-se abruptamente, ligou o rádio conectado ao seu I POD, selecionou Metal contra as Nuvens da Legião Urbana e cantou... Por nove minutos cantou cada verso gritando-os como uma promessa aos céus até o seu fim, e quando ouviu “o mundo começa agora” pausou a música e fez o mundo começar. Abriu o guarda-roupa e escolheu aquela peça ao fundo que certa vez comprara esperando a ocasião certa para estrear. Ela sabia o que tinha que fazer, sabia a quem deveria encontrar e onde fazê-lo.
No mesmo lugar de todos os dias foi encontrá-lo, não que ele realmente desse conta de sua presença, mas sabia que ele estaria lá. Um oi foi tudo o que se fez necessário, um oi que chamou a atenção dele para àquela que engasgava sempre antes de pronunciar essa palavra monossilábica.
Faziam parte de um mesmo espaço, pertenciam os dois àquele lugar, mas como todo alguém que quer passar despercebido ela não se permitia olhar em seus olhos, até aquele dia. O oi não foi uma simples saudação, o olhar trazia outros desdobramentos, um brilho diferente, como alguém que pede por atenção, como uma pergunta que exige uma resposta, uma mescla de imagens que naturalmente careciam de interpretações.
E ele, tão alheio a tudo aquilo, permitiu-se olhar. Não compreendeu ao certo o que representava, o que aquele olhar que buscava o seu queria dizer. Olhou-a profundamente buscando respostas e nessa tentativa acabou por perceber o quão bonita ela era. A simetria de seus traços até então não havia lhe chamado atenção, os olhos castanhos emoldurados por cílios compridos e pintados e a boca que ameaçava mover-se e não o fazia despertavam nele desejos até então nunca voltados para ela.
Ele queria conversar, ela também. Ela queria conhecê-lo além daquilo que a tanto tempo observava e criava em sua mente, ele queria entender como o brilho nos olhos dela poderia ter mudado de um dia pro outro.
Sentaram, sem convite de nenhuma das partes, os olhos não mais deixavam de se fitar, eles já haviam iniciado a conversa antes que as bocas percebessem. A curiosidade tomava seus pensamentos, tantas eram as perguntas sendo formuladas naquele momento, mas antes de qualquer uma delas eles, em comum acordo, estabelecido silenciosamente, se levantaram e partiram.
Foram até um lugar não muito distante do espaço comum, lá se entregaram a um sentimento não muito compreensível, mas que muito parecia com as exaltações noturnas que ela se entregava por conta da maestria de seus grandes autores. As palavras não faziam falta, aqueles corpos já se conheciam de algum lugar.
Os lábios dele sabiam exatamente onde percorrer, e como alguém que a muito não provava de seu doce preferido buscavam e desejavam cada parte daquele corpo a ser explorado. As mãos se encaixavam harmoniosamente, as mesmas mãos que conduziam aquele momento de descoberta, entrega, e por que não, diálogo. A linguagem dos corpos se fez mais sábia e madura, se adiantou a tudo aquilo que poderia ser dito e que não fariam daquele momento algo tão literário como estava sendo.
Um corpo se entregou ao outro, sem o pudor que seria natural a pessoas que nunca haviam se visto nuas e quando satisfeitos das vontades da carne buscaram mais uma vez o olhar.
Só então as palavras se fizeram presentes, e todas as perguntas outrora formuladas foram respondidas embaladas em um sentimento de cumplicidade que apenas amigos de anos poderiam ter.
Horas depois ela se vestiu, arrumou os cabelos, pegou sua bolsa jogada ao lado e o beijou, não disseram mais nada, apenas se separaram como se fossem se reencontrar dali a pouco. Ela voltou pra casa.
Lá tirou a roupa e a colocou mais uma vez no fundo do guarda-roupa, fechou o livro de Mário Benedetti que havia deixado aberto, desligou o rádio que ainda estava pausado na música da Legião Urbana, deitou e dormiu... Profundamente.
Acordou pensando em tudo o que havia acontecido no dia anterior, mas já não tinha mais força para manter aquele outro eu, mas o se... a possibilidade... Isso já era o suficiente. Agora ela sabia que poderia ser como as suas personagens prediletas, agora ela sabia que havia outra possibilidade de vida, de escolhas, de experiências e experimentações. E consciente de tudo que poderia ser se assim o quisesse foi ao guarda-roupa e pegou a mesma calça jeans e a mesma bata de sempre.
Naquele dia, no espaço comum ela, mais uma vez, encontrou com ele, que ainda entorpecido pela experiência da noite anterior buscou no olhar dela o mesmo diálogo e cumplicidade. Não encontrou... Não a encontrou naquele olhar... Hesitou, abaixou a cabeça, desviou o foco...
Mas, o mais importante já acontecera... Ela conhecera seu outro eu, ela se permitira ser outra, e ele sabia.

2 comentários:

  1. a mim soou como texto lindo, tocante, e de um jeito sincero. se era esta sua intenção, parabéns. se não era, mais parabéns ainda.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Isabel... poxa... Obrigada... De verdade não sei qual era a intenção...rsrsrrs

      Excluir